“O Brasil tornou-se o meu escape, o meu equilíbrio. Eu amo este país.”
(André Herculess)
Fazer parte de uma crew que é considerada uma das melhores do mundo não é para qualquer um. Atrás de cada conquista, existem muitos sacrifícios, muita dedicação, muitos sonhos, muitas escolhas a serem feitas. Disciplina, treinos, dedicação no preparo físico e psicológico. Espetáculos, publicidade e também organização de eventos o ano todo e agendas lotadas: essa é a rotina em dias normais. Mas foi nesses dias de pandemia que tivemos o prazer de entrevistar André Herculess, da conhecida “Momentum Crew”, que existe desde 2003 e além de André fazem parte da crew Max Oliveira, Mix Ivanou, Bruce Almighty, Ivo Ribeiro, Deeogo Oliveira, João Cunha “Magic”, Mad Dog, De Niro, Makumba, XXL, Lagaet Alin e Nastya, é o primeiro grupo profissional de Danças Urbanas em Portugal, na Europa. A crew coleciona mais de 70 primeiros lugares em diferentes eventos internacionais – o mais recente como campeões mundiais “Crew vs Crew”.
André Herculess também integra o time de colunistas do Portal Breaking World. Vale conferir um pouco da história de vida desse B-Boy, que também ama a Capoeira e a Yoga. E é apaixonado pelo Brasil!
BW – Como e com que idade você começou no Breaking? O que te atraiu na Cultura Hip-Hop?
B-Boy Herculess – Eu comecei a dançar com 14 anos. Estava no 9º ano e tive a opção de escolher entre uma das disciplinas escolares e optar por desenho ou por dança. A opção era feita simplesmente naquele horário eu me dirigir para uma sala ou para outra. Eu queria muito dança, pois já tinha visto o grupo de dança da minha escola e meu sangue ferveu, senti que conseguiria fazer tudo aquilo, na verdade, senti que, com treino, conseguira ir mais longe. Isso demonstra que apesar de não ter tido os professores mais capacitados dentro do Breaking, o método e a disciplina eram algo que eu já carregava, apesar de nunca ter feito um outro desporto antes. Acho que talvez muito por influência dos desenhos animados. Goku é Rei!!! Mas, estava sem coragem. Eu moro no meio rural, o que no Brasil vocês chamam de interior. A cultura da dança era muito pouca na época, então rapazes, havia muito preconceito. Claro que a Dança Urbana quebra esse tabu mais facilmente, mas a verdade é que a disciplina não se chamava Dança Urbana, muito menos Breaking. Aliás, minha primeira professora, Joana Rios, passou-nos algumas bases de Breaking, mas essa não era a sua formação. Mas no dia D, já eu convencido que não iria para dança, aconteceu que três rapazes da minha turma que vinham num transporte de outra área diferente que a minha decidiram ir para a dança. Bem, era só a desculpa que eu precisava. Acho que lhes devo isso até hoje. Mica, Didi e Silvio (Popper): muito obrigado! O que me atraiu, não sei explicar, eu fervilhava de energia, como disse adorava desenhos animados, mas nunca tinha encontrado meus super poderes, a dança deu-me a oportunidade de conquistá-los.
BW – Quem te ensinou os primeiros movimentos? Em que ano e que cidade isso aconteceu?
B-Boy Herculess – Barcelos é cidade onde tudo começou, apesar de como ter dito, nem eu nem a escola serem no centro da cidade. O meio era bem rural. Quer o lugar quer a escola ficam ainda hoje no meio de montes e campos de agricultura, o que torna o meio mais peculiar para que uma explosão de Dança Urbana tivesse acontecido. Na verdade, acho que tínhamos mesmo pouco, então quer eu, quer os meus colegas, agarramos aquilo com toda a alma. Muito bons tempos. Amávamos aquilo. A primeira pessoa responsável foi então a professora Joana Rios, que era também nossa professora de Educação Física, mas que tinha e tem uma academia de dança muito prestigiada chamada “Gimnoarte” numa cidade perto, chamada Povoa de Varzim. A ela o meu mais sincero obrigado. Daí o passo a seguir foi que os alunos mais velhos dela começaram a organizar treinos fora da escola. E aí entram Meno, Pedrinho (este era do Brasil de Recife, se não estou em erro) e Cesariny (Locker). Eles criaram um grupo chamado “Bad Fame”, eu e outros mais novos, estaríamos a ser como uma espécie de segunda geração. A eles, quer a todos os meus colegas dessa época: muito obrigado. Bom salientar que de tantos, apenas continuaram e hoje vivem da dança três pessoas profissionalmente. Eu no Breaking, Silvio no Popping e o Cesariny no Locking. Acho que muita gente nem imagina que somos um bando de garotos da roça que, sabe-se lá como, começaram a dançar e hoje são grandes referências na sua área.
BW – Existiam B-Boys que foram referência para você?
B-Boy Herculess – Referências… Eu comecei a dançar bem na véspera do surgimento do YouTube e da Red Bull. Então, o meu primeiro ano, as referências chegavam da forma mais peculiar. Ou filme, ou conseguir baixar algum DVD… Ou vídeos, que nos chegavam sabe-se lá como. Não sabíamos muitos nomes, era mais generalizado. Mas posso dizer que a primeira vez que vi Breaking foi num DVD que vinha junto com um álbum de uma banda de Nu Metal chamada “P.O.D.”. Estamos a falar de 2004, “Linkin Park”, “Link Bizkit”, “Slipknot” estavam no seu apogeu e isso era a musicalidade que eu conhecia. Hoje eu sei que essas bandas são extremamente influenciadas pelo Hip-Hop, mas na altura isso era Rock, era Metal para mim, era o que eu ouvia e todos os meus primos, quando comecei a entrar no Breaking e entrar claro no Hip-Hop, fui a “desilusão da família” (risos). Na época, ou se era um ou se era outro, os dois não dava (risos). Mas, então, essa banda era patrocinada por uma marca de roupa lendária para todos os B-Boys, chamada “Tribal” e esse DVD que vinha com o álbum era exatamente uma película que mostrava todo o “Universo Tribal Gear”, o que incluía outras bandas, Skatistas, Tatuadores, Low Rideres, Grafiteiros, DJs, MCs e, claro, B-Boys. Essa marca traduz todo o espírito da “West Coast” e todo aquele estilo de vida dos guetos negros e latino-americanos, em especial de raízes mexicanas. Na época, eu não sabia quem eram aqueles B-Boys, até porque quando eu vi esse DVD foi um ano antes de eu entrar para a aula de dança. Lembro que tentei fazer um “air baby”, achei tão impossível que parei na hora. Hoje eu sei que muitos desses B-Boys eram Ivan, Crumbs, Remande, Style Ements e Killafornia, entre outros. Um ano depois, entro na disciplina de dança. Primeiras aulas, a professora mostrava um filme. Foi sem dúvida do que mais nos impulsionou. “You Got Surved”, não sei como foi traduzido no Brasil [“Entre Nessa Dança, Hip-Hop no Pedaço”* – veja quadro]. Esse filme foi a nossa pilha. Devoramos tudo, tentamos fazer todos os movimentos, a playlist do filme era a nossa playlist de treino. Vimos uma centena de vezes. Por coincidência, este filme foi gravado em Hollywood, Califórnia, ou seja, a cena da Dança Urbana da “West Coast” estava em peso lá. Crumbs foi quem mais me chamou a atenção nesse filme. E, portanto, já era a segunda vez que o via. E, por coincidência, o primeiro DVD de Breaking que consegui baixar, no antigo “Emule”, eu coloquei Breaking e o que apareceu em péssima qualidade (risos) foi “Freestyle Session”, ou seja, Califórnia em peso, “Style Elements” de novo e, para mim, Crumbs destacou-se mais uma vez. Apesar de eu não saber o nome dele.
BW – Como começou na Momentum Crew? Fale um pouco da formação da crew e do perfil de cada um que faz parte do grupo.
B-Boy Herculess – O grupo começou em 2003, sobre o forte incentivo do B-Boy Crazy Kujo, dos EUA. Em conversa com Max e Mix, eles comentavam que haviam poucas crews em Portugal e como o país precisava de mais iniciativas, Kujo perguntou: “então, porque vocês não criam uma?”, eles responderam: “mas somos só dois”. E aí Kujo disse a frase que eu penso que fez o click para tudo começar: “you only need two to start a crew (você só precisa de dois para iniciar uma equipe)”. E assim foi. Com o passar dos anos mais pessoas começaram, e ao fim de pouco tempo, Momentum já estava a dar o que falar, mesmo fora do país. Isso mexeu com Portugal e também criou muita inveja e “haiting”. Eu sempre fui observando de fora, por todo lado pessoas falavam mal deles, incluindo o meu grupo na altura. Para mim, era simples, não sei se tudo isso que falam deles é verdade, só sei que são melhores do que eu, e independentemente de me identificar na época, respeitava-os. Sempre me esforcei muito, então sabia reconhecer quem se esforçava também. Penso que a primeira pessoa que realmente conheci da crew foi Deeogo, num treino improvável, foi ótimo, lembro de pensar: “fogo, finalmente alguém que treina como eu” (risos). Mas isso foi anos de eu sequer imaginar que poderia entrar para crew. Fui tendo alguns contatos com eles, nada muito íntimo, cruzar em algum evento, lembro de enviar uma mensagem ao Lagaet quando ele participou na Red Bull, nem o conhecia pessoalmente, mas quis dar meu apoio. Nessa época, eu tinha meu grupo, nem me imaginava noutro. Por volta de 2013 o meu grupo terminou, eu estava sozinho e como sempre à procura de melhorar. Como já não tinha que me deslocar para ir ter com o meu grupo, decidi investir em começar a treinar no Porto, na faculdade de Educação Física, lá possuía o chão e equipamentos de ginástica, eu precisava muito disso, não fazia ideia de quem estaria lá e novamente (risos) Deeogo. Pouco tempo depois, fui convidado pelo Max a fazer espetáculos que ele produzia nos cassinos, a partir daí o convívio era diário, as amizades se fortalecendo, independentemente de entrar no grupo, já não me imaginava com mais ninguém em Portugal. No dia 26 de janeiro de 2017, apanhado de surpresa, fui para treinar com meus “irmãos” e terminei sendo convidado para entrar para a crew. Gratidão! Hoje a crew possui 14 membros: Max (pai, o líder, o que cuida de todos), Mix (zelador e alegria), Deeogo (o motivador e a união da crew), Lagaet (inspiração, guerreiro, a farra – risos), Bruce e Nastya (o casal da crew, dum lado sentido de humor, do outro, o feminismo que faz falta numa crew só de homens), XXL (um irmão mais velho, grande guerreiro, impulsionador), Macumba (é a comédia da crew, das personalidades mais fortes que conheço), Roberto (o apaziguador, equilíbrio), Mirre (young gun, o membro mais recente, a nova geração, nosso menino), Mad Dog (parceiro de farra também – risos, sensatez, simplicidade), Ivo (apesar de não estar tão ativo, é uma inspiração para todos, a presença dele, mesmo que pouca, torna-se mesmo especial) e, por último, Magik (também um pouco menos ativo, mas a presença dele é super especial, super divertida, toda gente devia ter um Magik na sua vida, pelo quanto te vai fazer rir, mas também por ser absurdamente direto e dizer o que mais ninguém talvez tenha coragem de dizer). Bem, detestei ter que descrever cada um deles, pois a verdade é que todos, de forma especial e particular, me inspiram muito, me motivam muito, são minha alegria e os maiores guerreiros que já conheci.
BW – Houve eventos e conquistas memoráveis que você vivenciou junto ao grupo? Fale sobre isso.
B-Boy Herculess – Entenda que somos muito mais que uma crew de Breaking. Somos uma família, então as conquistas individuais de cada membro ou nascimento, por exemplo, do filho de algum dos membros, são para mim uma grande alegria. Mas se formos falar mais especificamente de Breaking, o que mais me marcou foi a nossa viagem aos Estados Unidos, na comemoração de 20 anos de “Freestyle Session”, em 2017. Fazia tempo que a “Freestyle Session” não era evento de crew, era a primeira vez para muitos dos grupos nos EUA. Todas as crews estavam lá, o nível era de loucos. Chegamos na semifinal. Demos tudo, dançamos com toda a alma e tenho a certeza que fomos tão longe pela nossa incrível energia, energia de família e não só pelo Breaking. Sentimos que representamos muito bem, o trabalho estava feito, então era hora de aproveitar a viagem, a crew inteira solta por Los Angeles só podia correr bem!
BW – Nos conte um pouco da sua rotina diária de treinos. Quantas horas de treino? E o que é necessário para viver da dança na Europa?
B-Boy Herculess – Bem, eu começo por planejar minha semana no domingo. Onde eu escrevo os 7 dias da semana em minha agenda. Começo por anotar os compromissos, as aulas, os ensaios ou qualquer outro tipo de responsabilidade com os outros e na base disso começo a programar os meus treinos. O principal a ser anotado é o de sexta-feira com a minha crew. Eu moro numa outra cidade, demoro cerca de uma hora de carro até chegar na nossa sede, que é um espaço lindíssimo chamado “MXM”. Este treino é o mais importante, não sei como descrever a vibe, a energia de treinar com a minha crew, é o melhor “momentum” da minha semana (risos). Em relação aos outros dias, eu tento fazer com que um dia seja mais intenso e outro menos, para permitir uma boa recuperação. Pode acontecer mesmo que em algum dia da semana eu só faça Yôga, alongamentos ou até mesmo nada. Às vezes, é melhor dar um passo para trás para depois dar três para a frente, com força e vontade. Nos meus treinos eu divido a preparação, ou seja, alongamento e workout para uma parte do dia. E a dança e movimentos técnicos noutra. Isso permite-me muitas vezes fazer treinos bi diários. Por norma, dia de domingo é dia de total repouso. Quebrar rotina, espairecer, não pensar em treino e em Breaking o máximo possível. Apesar de ter uma programação, sou flexível com ela. O corpo humano é muito complexo, há dias que simplesmente estou muito pouco ativo, e não tenho energia para treinar Power Moves como planejei, então, prefiro atacar em movimentos mais criativos e quem sabe numa outra hora ou no dia seguinte estou muito mais no “mode” desse tipo de movimentos que exigem mais esforço.
BW – O tempo passou e você faz tantas coisas… Como você se organiza para dar conta de tudo? Deve ser uma loucura…
B-Boy Herculess – Isso mesmo, minha vida artística divide-se por dar formação, trabalhando majoritariamente com crianças e adolescentes. Receber formação, porque eu realmente me identifico com a máxima “sempre um aluno”. Pelas performances, ou seja, espetáculos que podem ser esporádicos, por exemplo, espetáculo com a minha crew no auditório “X”, fazermos abertura duma gala de entrega de prêmios, gravar uma publicidade, ou seja, trabalho de um dia só. Ou temporadas de um mês, em direção com um Mágico, quatro meses de shows diários na sala de espetáculos do Casino. E, por último, pela organização de eventos, campeonatos. Neste momento, existem dois grandes eventos anuais. O evento organizado pelo meu grupo a “World Battle”, que acontece na cidade do Porto. E o “B de Dança”, que organizo na minha cidade, Braga, que acontece por volta do dia 29 de abril, que é, como sabem, a comemoração do “Dia Internacional da Dança”. Possuo outros projetos, mas devido ao Covid-19 estão de momento a ser realinhados, reestruturados.
BW – Durante as aulas você trabalha com crianças, qual o segredo de mantê-las sempre animadas e focadas na Dança? É mais fácil quando dançarinos começam desde criança? Como ensina foco e persistência a elas? Como deve ser o trabalho de um verdadeiro educador?
B-Boy Herculess – Acima de tudo, nunca se esqueça: são crianças! E competitividade alguma deve estragar e prejudicar a infância duma criança. Não querendo generalizar, mas eu já assisti a aulas/treino tanto de Ballet e de Ginástica Acrobática e é horripilante. Não só fisicamente, mas psicologicamente. Nunca deixaria uma filha minha passar por esse processo. Baseia-se na repressão e não motivação, no constante ataque e pessimismo e tampouco no encorajamento. Eu, pessoalmente, trabalho assim. Primeiro fator: avaliar as idades. Criança gosta de brincar, e vai ser a brincar que elas vão fazer tudo aquilo que eu quero. Exercícios lúdicos. Faça a sua aula divertida, faça-as rir, mas faça-as entender que se forem para a aula só para brincar, então, não há necessidade de estar ali, podiam ter ficado em casa. Quando você consegue isso, a aula flui de forma fantástica, as crianças estão motivadas, socializaram, estimularam o corpo de uma forma diferente, desenvolveram capacidades e estão perfeitamente introduzidas na dança, na arte, neste caso no Breaking. O segundo fator: veja, entenda na criança se o Breaking será algo transitório, uma experiência, um aprendizado ou se realmente há um despertar de interesse maior. Isto porque não há necessidade de ser tão duro, severo, exigente com turmas ou alunos em que Breaking é umas das suas atividades que terá uma grande contribuição para a formação dum indivíduo, mas muito provavelmente será passageira, isto é, entenda que todos os alunos que chegaram até si se tornaram realmente B-Boys e B-Girls, o que não quer dizer que o momento da vida em que o Breaking estiver na sua vida não será super enriquecedor. Por outro lado, entenda que se um aluno desperta um especial interesse, como alimentar esse entusiasmo, talvez seja a hora de falar com esse aluno e com os pais e entender se podem passar a um outro nível de exigência.
BW – Hoje em dia, além da cultura, o Breaking está perto de se tornar um Esporte Olímpico. Como você vê isso? Como serão esses que terão condições de fato de levar uma medalha olímpica para casa?
B-Boy Herculess – Bem, eu acho ou melhor, eu espero que as Olimpíadas se tornem algo realmente positivo para a cultura Hip-Hop. E realmente não receio pela nossa identidade, porque acho que nós, cultura, já somos crescidinhos que chegue, para não perder uma personalidade que demorou 40 anos para se construir. Não é porque vai virar um competição olímpica que vai deixar de ser Hip-Hop, porque não tem como você se tornar um B-Boy fazendo apenas exercícios de ginástica. Não estamos a falar de competição de Power Moves, por exemplo. Estamos a falar de Breaking em toda a sua forma, em toda sua arte, ou seja, a Dança estará lá. Eu realmente acredito que isto é uma nova e boa plataforma, semelhante a Red Bull, onde talvez, espero, o mundo repare mais em nós, nos valorize mais. Comparemos ao Skate, que é uma arte atlética também de rua, existem Skatistas recebendo bons patrocínios, tendo uma boa condição de vida, as premiações dos campeonatos deles nem se comparam às nossas e aí eu pergunto: nós não merecemos estar nesse nível também? Vamos perder nossas raízes por termos mais exposição? Então o Rap nunca poderia ter chegado no mundo todo, saturado milhões, não poderia ter saído nem de Nova York. Tem MC´s vivendo da música. Quantos B-Boys e quantas boas B-Girls estão vivendo da Dança no Brasil, por exemplo? Então, essa é a minha posição e expectativa. Que devemos ser levados mais a sério pelo mundo inteiro. Talvez nas próximas gerações, quando seu filho disser “eu quero viver do Breaking, quero viver de dança”, a sua referência seja outra e encare essa ideia com mais entusiasmo do que provavelmente todos nós passamos.
BW – O que será necessário modificar nesses que pretendem se dedicar ao Esporte?
B-Boy Herculess – Não acho que precise uma grande transformação para além da que já existe atualmente. O nível não para de aumentar. Repare, nós não vamos vender o Breaking para as Olimpíadas, a gente vai usar as Olimpíadas para fazer o que já fazíamos, ou seja, quer uma medalha, prepare-se como se teria de preparar para qualquer “Red Bull BC One”, “Undisputed”. Agora como disse, o nível não para de crescer e com isso acredito que chegará um tempo que tudo fará diferença. Não basta treinar muito ou mais, tem que treinar melhor. Tem que comer melhor, descansar, dormir melhor. Enfim, com tanta gente boa e com tantos elementos interligados, talento será apenas um dos fatores que você pode contar.
BW – Recentemente, você esteve no Brasil. Um pouco antes da Pandemia do Novo Coronavírus se alastrar por todos os países. Como foi esse tempo que esteve aqui?
B-Boy Herculess – Bem, esta foi a minha quarta ida ao Brasil e nunca tenho bem palavras para descrever o quão maravilhoso e especial é para mim pisar este solo. Desde criança, sempre tiveram dois países que me fascinavam imensamente: um, o Japão e outro, o Brasil. Sou muito feliz por ter conhecido os dois. Mas o que acontece é que a minha paixão pelo Brasil não para de crescer. Neste momento, já visitei nove dos seus estados e não vejo a hora de conhecer os restantes, e são tantos! Brasil é uma fonte inesgotável de inspiração. Eu aprecio tanta coisa nesse país, eu não falo do óbvio, samba, capoeira e as fantásticas praias. Para mim é muito mais, algo realmente me inspira não só no Brasil mas no brasileiro. A boa disposição, o sorriso junto com “bom dia”, o otimismo como vocês falam aí, “alto astral”. Eu sinto muita falta de cores, de perfumes, de ânimo em Portugal. O período de inverno, então, é tão duro aqui. O Brasil tornou-se o meu escape, o meu equilíbrio. Eu amo estar no Brasil e espero mesmo realizar o sonho de aí morar um dia. Em especial, esta última viagem, em plena véspera de quarentena, ficou muito marcada pela minha passagem pela Bahia. Estava devendo para ela, para ele e para a Capoeira. Sempre passei muito tempo em São Paulo e Rio, também já conhecia os outros estados do Sul. Estava na hora de direcionar minha atenção para o Nordeste. Um outro Brasil. Vim com alma cheia. Cheia de cores, de novos ritmos, de “axé”, daquela alegria de viver. Obrigado, Bahia! Obrigado, Brasil!
BW – Como tem sido a vida de quem vive da dança nesse momento na Europa? O que você espera ainda realizar esse ano?
B-Boy Herculess – Bem, a vida de quem dança e de artistas em geral nunca foi um mar de rosas. Se não fosse realmente a enorme paixão que sentimos pelo que fazemos, ninguém suportaria essa vida. Como tudo, isso só piorou. Está tudo muito parado, eu tive todos os meus projetos e espetáculos suspensos, adiados ou mesmo cancelados. Se não fosse a ajuda dos meus pais, não sei como estaria neste momento. Houve várias iniciativas de apoio, não chegaram a todos, é óbvio. Eu, assim como outros colegas, conseguiram manter as aulas em formato on-line e, neste momento, já está muita gente a dar aulas presenciais, pois como estamos no verão em Portugal é possível dar a aula ao ar livre e manter a distância de segurança. Pessoalmente, eu encarei isto como um período de autoformação. Existem três atividades que eu adoro na minha vida, Yôga, Capoeira e, claro, o Breaking. Então, estou aproveitando para me estudar e me aprofundar mais nas tecidas e filosofias do Yôga. Me aplicar mais que nunca na Capoeira, pois minha próxima graduação já me vai permitir lecionar essa arte, o que é uma grande responsabilidade. O Breaking, minha grande ambição, tanto para melhora, explorar, dedicação nunca é pouca, então estou na luta diária de me melhorar. Basicamente, essa foi minha perspectiva, o caminho que encontrei: me formar, ser bom naquilo que gosto e quero continuar a fazer para o resto de minha vida.
BW – Na dança perdeu algum amigo com o Coronavírus?
B-Boy Herculess – Felizmente, graças a Deus, “corona” não afetou ninguém que eu conhecesse e tivesse uma relação mais próxima. Mas um membro da minha crew perdeu sua avó. Tudo isto é muito triste, tão difícil, poderia ser a minha, custa-me só de escrever isto agora. Resta ter fé que que tudo isto terá seu lado positivo. Que as pessoas fiquem mais sensíveis, mais preocupadas com as outras. Enfim, o “mais amor por favor”, que nunca é demais. Acredito que as grandes revoluções começam assim, um sentimento que ganha força, é isso que precisamos, amor, compaixão, vermo-nos nos outros.
BW – Como foi o retorno do Brasil para a Europa?
B-Boy Herculess – Em relação ao meu regresso do Brasil foi uma aventura que vou adorar contar sempre. Basicamente, por um momento, eu simplesmente pensei estender minha estadia no Brasil por tempo indeterminado, pois a situação no Brasil ainda estava muito calma e na Europa já estava estourando. Mas! Quando se falou de fechamento de fronteiras, quando eu senti a preocupação de minha família com receio que se a situação no Brasil piorasse e depois eu já não tivesse como voltar… Conversando com uma amiga que estava em viagem pelo Brasil, que decidiu regressar imediatamente, cheguei à conclusão que seria mesmo melhor regressar, pois por pior que a situação estivesse não há nada como a sua casa, sua família. E então foi isso, dez da noite do dia 18 de março, eu estou no Rio de Janeiro, 100% convencido que vou continuar minha estadia no país que tanto amo. E às 10h30 eu já tinha ligado para a minha agência de viagem, arrumado minha mala e me dirigia para a central de ônibus Novo Rio, para apanhar o primeiro transporte para São Paulo. Foi de loucos, digo louco de engraçado, meus amigos ficaram completamente espantados: “como assim tu vai embora! Embora? Embora Portuga?” (risos). Chegando na estação, todos os ônibus estavam bloqueados, à exceção de uma empresa que, por algum motivo, como a sua sede era de São Paulo e no Rio podia ainda operar. Esse ônibus só saia às 6 da manhã, então, passei a noite na central. Cheguei em São Paulo por volta do meio-dia, meu voo era 16h, em Guarulhos, sendo que eu cheguei no Tietê e ainda tinha que fazer meu check-in. Mas um querido amigo salvou o rolê, apareceu para me salvar e assim foi, dentro do caos, a harmonia foi perfeita. Embarquei sem problema algum. Chegando em Madri, Espanha, todos os voos para Portugal, devido ao “corona”, também foram cancelados. Mas mais uma vez, com toda a sorte e benção do universo, o lugar de Portugal onde eu moro, fica a 1h30 de carro da divisa com a Espanha, onde existe um outro aeroporto. A companhia Iberia foi incrível, trocou meu voo e depois de várias horas, consegui embarcar para Vigo. Para chegar em Vigo, meus pais tiveram que pedir uma autorização na polícia para poder atravessar a fronteira terrestre e ir me buscar no aeroporto. E essa foi minha história. 24 horas depois de decidir voltar, cheguei em casa, foi uma viagem alucinantemente pacífica, com um misto de sentimentos, emoções, que sempre é voltar do Brasil, mas destas vez redobrado por toda esta crise mundial.
BW – O que você achou do adiamento das Olimpíadas de Tóquio?
B-Boy Herculess – Em relação às Olimpíadas de Tóquio, não acho algo deveras relevante, o mundo parou para todos. Penso que Tóquio seria mais uma oportunidade de aliciar o mundo com a nossa fantástica arte, vai ter que esperar. Mas relembro que o Breaking só se tornará oficial em 2024, em Paris.
BW – Que conselho você dá a B-Boys e B-Girls nesse momento de isolamento?
B-Boy Herculess – O conselho que eu dou para todos os meus irmãos de batalha, falo de batalha de vida, não das competições, pois é assim que eu vejo todos os outros B-Boys, B-Girls e Top Styleres. Considero a todos irmãos, pois apesar de competirmos uns com os outros, eu acredito que mais ou menos reconhecimento e admiração que tenhamos de outras pessoas, só uma pessoa que faz e se esforça no mesmo que eu vai realmente saber o quão esta arte é difícil e como viver dela é um desafio, sempre foi, antes e depois do “corona” e, por isso, eu admiro muito a todos, independentemente até de qualquer rivalidade. Estamos todos no mesmo barco. Isto para dizer que o meu conselho é: mantenham-se motivados, aproveitem este momento para voltar a procurar suas inspirações e para refletirem que mesmo que nunca mais voltasse a haver eventos no mundo, ninguém pararia de dançar, isso chama-se paixão. Então, alimentem vossa paixão, procurem o que vos faz bem e o que mantém essa chama acesa. Não deixem qualquer circunstância vos desanimar. Somos guerreiros, cansamos, aleijamos, mas no próximo treino estamos lá de novo. Quem mais faz isto, que outra arte ou desporto, sem qualquer apoio e valorização, faz o que nós fazemos?
BW – Tem sugestão de algum treino que pode ser feito dentro de casa para não perder a forma?
B-Boy Herculess – Sobre treino em casa, eu acredito que o Breaking é tão complexo que chega a ser infinito, pois a criatividade assim o é. Então, não há desculpa. Analise todas as partes desta dança. O que você pode melhorar, consoante as condições que tem. Top Rock, talvez o vosso não tenha muito espaço, mas porque não trabalhar pormenores musicais, como contra-tempos da música, que por serem muito rápidos, não necessitam de deslocação pelo espaço. Suas descidas/dores, algo que muitos B-Boys e B-Girls não trabalham, quantas descidas você tem? Bora criar 10 descidas simples e originais? Down Rock/Footwork, possivelmente você já tem vários steps e kicks, mas e footwork mais fluido como pretzels, e mesmo floor rock, isto são movimentos mais suaves, que convidam com músicas mais lentas, você tem? Freezes? Você precisa tão pouco espaço para trabalhar Freezes. Você tem todos os Freezes básicos? Você sabe fazer todos eles para os dois lados? E passagens? Quantos Freezes seguidos consegue fazer? Sabe o quanto isso vai deixar seus Power Moves mais fáceis? Para não falar, é claro, de alongamento e flexibilidade, que nunca é demais, que previne lesões. Resumindo, a velha frase, “quem quer faz, quem não quer inventa desculpas”. Não minta a si mesmo. A verdadeira batalha é contra si mesmo. Cadê aquela atitude no racha? Tenha ela consigo mesmo!
Fotos: Marta Marques, Arquivo Pessoal e Reprodução