Vitória no Breaking e um soco no preconceito
“Uma sensação de ter calado muitas pessoas que duvidaram de mim” (Itsa)
Emocionante! Não tem outra palavra que define a vibe daquela noite de julho de 2019, durante a “Rede Bull BC One Cypher Brasil” quando, diante de todos da cena, duas B-Girls fortes e inspiradoras disputaram a vaga para ir à competição mundial em Mumbai, na Índia. De um lado, Karyn, do outro, a mineira Itsa, que foi a campeã da noite. “Foi tudo bastante inesperado”, conta Itsa.
No dia das seletivas em Belo Horizonte, acordou tarde, estava prestes a perder as inscrições. Com uma ajuda de uma amiga, chegou a tempo de participar e ganhou em Belo Horizonte, depois, em outra atividade, teve um acidente no palco e machucou o pé direito. Sua participação e vitória no “Camp Brazil” foi com o pé enfaixado. Mas foi com esse mesmo pé que venceu e entrou num avião rumo a Mumbai, na Índia.
Superação sempre foi combustível para aqueles que sabem que o céu é o limite! A vida de Itsa nunca foi fácil, nasceu em Belo Horizonte, crescendo na divisa do bairro Tirol com a favela do Itaipu, a infância foi cheia de discriminação e precisou ser forte e ter foco para seguir em frente.
Em 2017, fez uma audição, o que garantiu uma vaga cinco meses depois no “Cirque du Soleil”. Atualmente, Itsa tem uma vida cheia de viagens e 10 shows na semana, garante que a situação tem suas vantagens e desvantagens. Falou: “Aprendi a cuidar da saúde e ter disciplina para manter o nível técnico”.
Foi entre um compromisso e outro que Itsa aceitou conversar com o Portal Breaking World.
Observem que todas as palavras desta entrevista terminadas com “e” são de apropriação não-binária, sendo essa identidade de gênero que Itsa representa. Em respeito à nossa entrevistada e a pluralidade de gênero, pois não compactuamos com nenhum tipo de discriminação ou preconceito, publicamos as respostas na íntegra, exatamente como foram escritas.
Confira abaixo:
BW – Queria que você falasse um pouco sobre onde nasceu, sua infância e sua vida em família.
B-Girl Itsa – Nasci em Belo Horizonte (MG), cresci na divisa do bairro Tirol com a favela do Itaipu, na região do Barreiro. Minha infância foi cheia de discriminação, por causa do meu estereótipo corporal, por meu comportamento não 100% feminino e nem 100% masculino. Eu era uma criança muito agitada, sempre gostei muito de jogar bola, brincar.

BW – Parece que sua relação com a dança começou cedo. Nos conte um pouco sobre isso. Você teve apoio da sua família?
B-Girl Itsa – A minha primeira referência na dança foi meu primo William, ele se mudou para o lado da minha casa, e comecei a vê-lo (escondido pelo muro) treinando no quintal de casa. Depois, consegui convencê-lo a me levar para os treinos. Minha família não acreditava que iria tão longe, e tinham medo dos lugares e horários que aconteciam os treinos e eventos. Quando perceberam que eu não iria desistir da dança, começaram a me apoiar.
BW – Quando você teve o primeiro contato com a Cultura Hip-hop? E quando surgiu o amor pelo Breaking?
B-Girl Itsa – Com meu primo William, acredito que o amor foi à primeira vista. Ver aqueles movimentos sendo executados com tanta rapidez e musicalidade mexeu comigo.
BW – Alguém te ensinou a dançar Breaking? Você teve referências? Quem foram?
B-Girl Itsa – Ge Santiago (B-Boy Ge) e Lorran Daglas (B-Boy Sarda), co-fundadores da Crew “Skeleton Breakers”, foram duas das primeiras pessoas a me ensinar o Breaking, voltado para batalha. B-Girl Chellz e B-Girl Ruthchelly também me ensinaram muito, minhas primeiras referências além delas… B-Girl Nathana de Uberlândia, B-Girl Sarah Bee, da França.
BW – Em 2018 você passou a integrar o balé do “Circo du Soleil”. Como foi isso da seleção até o resultado? Como é o dia a dia de quem dança e trabalha em circo?

B-Girl Itsa –Em maio de 2017, minha ex-professora de Ballet Danielle Pavam, fez um post no Facebook, se tratava das Audições que o Cirque faria para dançarinos de todas as modalidades. Me inscrevi e fui fazer a audição, em agosto do mesmo ano. Felizmente, eu passei, mas ainda sim, tive de esperar 5 meses para ser chamade. Ter uma vida de viagens e 10 shows na semana tem suas vantagens e desvantagens. Aprendi a cuidar da saúde e ter disciplina para manter o nível técnico.
BW – Fale sobre sua experiência de ser B-Girl no Brasil e nos conte os principais desafios enfrentados hoje pelas mulheres?
B-Girl Itsa – Estou vivendo um dilema no momento, que é de não ser reconhecide como “Não-Binário” na cultura e, além de tudo, também estar enfrentando esses desafios junto às mulheres no Breaking (afinal de contas, foram elas que me acolheram). Devemos nos atentar ao fato de que, assim como boa parte da comunidade Trans foi excluída do movimento LGBTQIA+, hoje a Cultura Hip-Hop está excluindo as mulheres (cis e trans) da cultura, não só elas, como outras minorias.
BW – Machismo, assédio e preconceito dentro da cena existe? Você já foi vítima disso? O que pensa sobre os assuntos?
B-Girl Itsa – Existe, é um absurdo, e tem que acabar! Não só eu, mas, milhares de mulheres, homens cis e trans foram discriminades. Várias pessoas desistiram do Breaking por situações de assédio, homofobia, humilhação ou até mesmo segregação da dança. A “Rede Bgirls do Brasil” se uniu e criou um guia antiassédio para conscientizar os B-Boys e B-Girls da cena. Eu acredito que isso seja apenas o começo, as mulheres irão resgatar a verdadeira essência do Hip-Hop, educando os homens que quiserem participar de seus eventos!

BW – Ser B-Girl, trabalhar em circo, como você consegue se dedicar às duas coisas?
B-Girl Itsa – Eu precisei ficar bastante doente mentalmente para entender que era impossível ter 100% de mim para os dois. Depois de ter me recuperado, comecei a entender que descansar o corpo e a mente também é preciso para melhorar minha dança. Comecei a fazer planejamentos das minhas semanas de shows, sempre que eu tinha 1 show por dia (o que era raro no “Cirque”), era meu dia de treino, muitas vezes pedi para tirarem sofás e mesas do meu quarto de hotel e treinava ali mesmo, depois do show, de madrugada. Treinar virou um hábito, uma coisa que me faz bem, e não algo que me deixa pressionade para o próximo campeonato.
BW – Quando surgiu a ideia de participar da “Red Bull BC One Cypher Brasil”? Você imaginava chegar na final e ganhar?
B-Girl Itsa – Foi tudo bastante inesperado. No dia das seletivas, em Belo Horizonte, acordei tarde, estava prestes a perder as inscrições. Por uma ajuda da minha amiga cheguei a tempo e ganhei em BH, depois, fazendo turnê, tive um acidente no palco e machuquei o pé direito. Ganhei o “Camp Brazil” com o pé enfaixado.
BW – Como você se preparou para esse evento? Naquele tempo que esteve competindo bateu um frio na barriga ou foi tranquilo?
B-Girl Itsa – Não tinha me preparado para o evento no geral, estava me recuperando do meu acidente. Estava feliz de ter visto amiges do Breaking e Hip-Hop depois de tanto tempo só viajando e trabalhando com o “Cirque”, era a primeira vez depois de muito tempo que eu não dançava algo diferente das coreografias do show.
BW – Porque você acha que os jurados decidiram por você? O que fez a diferença na final?
B-Girl Itsa – Acredito que as batalhas foram bastante acirradas, mas eu estava me sentindo com bastante energia, acho que naquele dia consegui me conectar com minhas adversárias, jurades, DJ e plateia. Devemos considerar que muitas mulheres que estavam nas finais, também participaram da seletiva da “Cypher São Paulo” de manhã. Muitas acordaram cedo para chegar a tempo de fazer as inscrições, isso foi bastante estressante e desgastante para muitas competidoras. Por que não fizeram as seletivas e finais com os B-Boys no mesmo dia também? Porque o limite de inscrições entre B-Boys e B-Girls foi tão desigual?

BW – Que sentimento você teve quando recebeu a notícia que era a ganhadora da “Cypher Brasil”? Como foi o retorno para a sua cidade, teve muita festa e comemoração?
B-Girl Itsa – Um sentimento de surpresa, euforia, ao mesmo uma sensação de ter calado muitas pessoas que duvidaram de mim. Minha família não estava lá em SP, mas acompanharam tudo pela live. Meus amiges do “Cirque” e de BH, todes me parabenizaram. Teve churrasco!
BW – De que crew você faz parte? Fale um pouco de sua relação com a sua crew?
B-Girl Itsa – Eu já fiz parte da crew “Skeleton Breakers”, desde 2012 até 2019. Foi assim que aprendi a ter atitude nas batalhas.
BW – Nos conte como foi a sua viagem para a Índia. O que achou do local, das pessoas e dos costumes? Como foi recebida?
B-Girl Itsa – A Índia é um lugar de pessoas muito fortes espiritualmente, apesar da pobreza e poluição extrema, fui muito bem acolhide, os B-Boys Bart, Till, Pelezinho e Neguin estavam comigo e aproveitamos bastante o evento treinando, participando da “Continental Battle”.
BW – No torneio em Mumbai você teve sua primeira batalha com três B-Girls. Como foram essas batalhas?
B-Girl Itsa – Muita energia, muita expectativa e bom empenho de todes.

BW – O resultado naquele momento não foi positivo para o Brasil. O que você achou de tudo e como se sentiu? Pretende competir nos próximos anos?
B-Girl Itsa – Me senti como iniciante, alguém que tinha acabado de renascer no mundo do Breaking e que tem muito a melhorar enquanto dançarine.
BW – Sobre o Brasil, como você vê o preparo e o nível de dança das B-Girls brasileiras? Estamos preparados para competir e ganhar de outras B-Girls do resto do mundo?
B-Girl Itsa – Acredito que as B-Girls do Brasil sempre tiveram nível para competir com outras lá fora, mas acho que houve uma rejeição e até mesmo uma insegurança dos B-Boys, de perderem o lugar de protagonismo para as mulheres. Hoje, as mulheres e outras minorias estão se unindo para fazer um Breaking independente de homens misóginos e preconceituosos. Uma nova cena do Breaking no Brasil está nascendo.
BW – O que você pensa sobre a união das B-Girls na “Rede Bgirls do Brasil”? Fale da importância disso.
B-Girl Itsa – Essa ação tem tudo a ver com representatividade. O que seria da B-Girl Terra se não assistisse outras mulheres dançando?! A “Rede Bgirls do Brasil” está aí para mostrar e encorajar outras mulheres a serem o que quiserem. E também está mostrando para os B-Boys que não precisam deles para evoluir na dança e/ou produzir eventos, bem como denunciar homens machistas na cena.
BW – O que você acha sobre os espaço destinados às mulheres dentro dos eventos de Breaking brasileiros?
B-Girl Itsa – Acho que ainda é muito desconfortável para as mulheres, principalmente mulheres com seus filhes, em muitos eventos não há espaço para amamentação, fraldário, espaço para as crianças. A mulher ainda se sente desconfortável para vestir o que bem quiser em um evento, ela fica entre se masculinizar e ser vista como “lésbica”, “macho demais para ser mulher” ou colocar algo mais feminino e ser sexualizada, assediada por causa disso. É muito triste que o sexismo tenha atingindo lugares de inclusão como eventos de Hip-Hop.
BW – Se pudesse deixar um recado para as B-Girls da nova geração o que diria?
B-Girl Itsa – Não tenha medo, nem vergonha de dançar o que você é, de expressar o que você quer ser. Em qualquer competição… Vence aquele (a) que aprende!
Fotos: Arquivo Pessoal
