Unir versos, unir rimas, unir crianças é igual a escrever o futuro
O que sobra para as crianças da periferia? Os bares, as igrejas, as lajes para empinar pipas, os parques, as feiras, são os únicos locais socioculturais da quebrada, nessa realidade é um desafio não perder os jovens para o crime e tráfico.
Mano Brown, do grupo “Racionais MC´s”, já citava no Rap “Fim de Semana no Parque”: “O investimento no lazer é muito escasso e o Centro Comunitário é um fracasso, mas aí, se quiser se destruir está no lugar certo; tem bebida e cocaína sempre por perto, a cada 100, 200 metros nem sempre é bom ser esperto”.
A música de Brown retrata o perigo sempre presente nas periferias e o descaso do governo diante de tudo. Mas a terra sofrida, regada muitas vezes por sangue de culpados e inocentes, também é uma terra fértil em talentos. Exemplo é o projeto “Família UniVersos”, que começou no quintal da casa de Robertinho Filho do Céu, em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, quando ele ensaiava seus próprios Raps, que compõe desde 2004.
Certa vez seus sobrinhos e amigos começaram a cantar suas músicas e tudo começou ali. Cansado de ver tantas crianças se perderem e morrerem cedo, naquele momento Robertinho descobriu qual seria sua missão junto aquela comunidade onde morava e até hoje não parou mais.
O Portal Breaking World conheceu Robertinho e as brilhantes crianças da “Família UniVersos” na São Bento, se encantou pelos pequenos artistas e agora resolveu contar a história desses grandes talentos. Leia a matéria abaixo:
BW – Robertinho, queria que você falasse primeiro de você e de sua caminhada na Cultura Hip-Hop. Quando se envolveu com a cultura?
Robertinho – Eu sou natural de São José do Rio Preto, sou educador social no “Céu das Artes”. Mas nas ruas sou conhecido como Robertinho Filho do Céu. Eu me envolvi com a Cultura Hip-Hop ainda criança, por intermédio de um padrasto de um amigo que me mostrou na época a música “Fim de Semana” dos Racionais MC’s. Nos dias de feira eu sempre pedia a minha mãe para comprar Fita K7 de Rap. Na escola, tinham amigos que também curtiam Rap, foi quando escutei a música do Thaíde e do DJ Hum “Nada pode me parar”. Naquela época, fui influenciado pelo Programa da MTV “Yo Raps”. Lá passavam vários clipes e comecei a conhecer outros grupos. Tive o primeiro contato com o Hip-Hop em projeto social no bairro Santo Antônio, lá comecei meu primeiro contato com o Breaking, Graffiti e em seguida o Rap. Iniciando em 2004 uma trajetória musical.

BW – Quem foram suas referências na Cultura Hip-Hop?
Robertinho – Minhas primeiras referências foram Mano Brown e Thaíde. E aqui em São José do Rio Preto foram o DJ Basim, Ana Paula e o Mano Di.
BW – Quando e como começou essa oficina de Rap junto com as crianças? Como foi o início desse trabalho? De quem foi a ideia?
Robertinho – Em agosto de 2016, fundamos o grupo musical “Família UniVersos”. Começou assim: já estávamos cansados de ver crianças e adolescentes envolvidos com o mundo do crime. Esses jovens iam presos, outros morriam muito cedo, então pensei em criar ações mais efetivas no bairro, ensaiando no quintal da minha casa. Certa vez, recebi meus sobrinhos e alguns amigos, foi nesse dia que percebi que por meio do Rap poderia iniciar um projeto social, trabalhando valores de vida e a conscientização para se ter uma vida cidadã!
BW – Como é trabalhar com crianças num projeto social independente? Fale dos principais desafios?
Robertinho – É gratificante demais doar nossas vidas por uma causa como essa. Eu falo de projeto social porque além de fazer Rap, eu trago sempre informações para esses jovens, capacitações de pessoas voluntárias, pessoas de teatro, de oratória, pessoas de outros elementos da Cultura Hip-Hop, do Breaking, do Graffiti, do DJ, então, o que eu posso agregar de conhecimento na vida deles eu faço. Hoje, nós pagamos do próprio bolso cursos de computação para alguns meninos. Então, tudo que é possível eu faço em nós por nós. É gratificante demais semear coisas boas! Na esperança que virão muitos frutos para que eles cresçam e multipliquem tudo que estão aprendendo. A maior dificuldade é a falta de apoio financeiro, porque para gravar música, para produzir beat, para gravar clipe e para ir nos eventos para cantar fora, tudo precisa de dinheiro. E às vezes não temos condição, não temos uma van. Então, o principal desafio é a falta de apoio financeiro e de ter uma estrutura melhor, ter uma aparelhagem de som e eu preciso ter um trabalho para sobreviver e ainda arrumo tempo para poder estar com os meninos. Eu gostaria de poder trabalhar integralmente com eles, mas por enquanto não tem condições.

BW – Quantas crianças estão envolvidas nesse projeto, qual a faixa etária e como funcionam as oficinas? O que você ensina exatamente nelas?
Robertinho – Hoje, o projeto conta com 15 meninos e mais 3 que já são jovens adultos, então, ao todo, são 18 e uma menina que já conhece o nosso trabalho. E a mãe dela falou que ela queria participar, então, ela vai começar a vir, porém, depois que passar a pandemia. A faixa etária é de 8 a 20 anos. Eu compartilho a minha experiência desde 2004, compartilho com eles de como eu crio as músicas, de como criar as rimas, de como cantar no ritmo certo, no compasso, na métrica e no flow e também estudar a cultura de que eles fazem parte. Então, dentro do grupo “UniVersos” nasceu a oficina e funciona no quintal de casa e quem desejar chegar é só colar, logo depois que passar o problema do coronavírus. Além de eu ensinar Rap, eu ensino os valores da vida. Acreditar em Deus, valorizar a família, estudar, trabalhar, ser luz por onde passar. O mundo precisa de pessoas que enxerguem a vida de uma forma diferente. Por isso a frase que é o lema do nosso grupo “Que a nossa vida, seja vida, na vida de outras pessoas”.
BW – Parque Cidadania, local onde há violência e tráfico de drogas, foi o local onde você começou esse trabalho. Que estratégia você desenvolveu para manter as crianças longe da vida do crime?
Robertinho – Sim, realmente Parque Cidadania é onde eu moro e onde eles moram e o índice de criminalidade é grande. Muitos chegam sem limites dentro da família deles, da educação que eles não tiveram, então, precisamos ensinar limites e regras. Não é fácil mas, graças a Deus, tem dado certo. Temos várias lutas mas fazemos a nossa parte. E a estratégia que todo educador deve ter é olhar essas crianças e esses jovens de uma forma que eles nunca foram olhados. É enxergar dentro deles e descobrir o talento, o dom o que cada um tem de melhor, qual a aptidão de cada aluno, extraindo de dentro deles o que têm de melhor. Olhar de uma forma especial para que eles se sintam especiais. E sempre mostro as consequências das escolhas. Mostrando o porquê é bom escolher, trabalhar, estudar e respeitar o próximo e não escolher o crime. E acima de tudo, de dar amor e os fazendo se sentir importantes.
BW – Explique como chegou no nome “UniVersos”? A ideia foi sua?
Robertinho – Eu não tinha nenhum nome, eu ia cantar com os meninos. Então, era Robertinho e os meninos do Rap. Pensando muito, estudando sobre nomes, orando, aí eu estava no carro curtindo o som e me veio esse nome de unir versos, unir rimas e o mundo, em todo o mundo. Então eu falei: que legal, tem duplo sentido essa palavra. E chegamos no nome “UniVersos” e o que significa é unir versos, unir rimas e cada ser humano é um universo dentro de si, vários sonhos, várias lutas, várias tristezas e várias alegrias, várias vontades. É um universo dentro de nós! Então somos a “Família UniVersos”!
BW – No ano passado, os meninos ganharam o prêmio “Nelson Seixas”, projeto que investiu cerca de R$ 1 milhão em todas as categorias premiadas de artistas residentes em Rio Preto e dava direito a gravação de um CD. Mas você conseguiu, além do CD, gravar um clipe. Nos conte: como foi tudo isso?
Robertinho – Sim, no ano passado e retrasado nós ganhamos o prêmio “Nelson Seixas”. Em 2018, nós ganhamos a gravação do CD e 2019 foi o lançamento do CD, o show de lançamento, a circulação do CD. A gravação do clipe foi o seguinte: na verdade, a premiação foi a minha história, quem ganhou foi o Robertinho e na minha história eu falo que eu fundei um grupo e coloquei os meninos todos para gravar, eu ganhei R$ 15.000,00 e investi no clipe.

BW – A música vencedora do prêmio foi “Eu Acredito”. De quem é a autoria e como foi feita? Como foi dirigir todas as vozes dessas crianças?
Robertinho – A música “Eu acredito”, eu coloquei o título do projeto, que é eu acredito que dias melhores virão, porque dentro da minha história entra o “Família UniVersos” e nessa primeira música dos meninos, que se chama “Eu acredito”, nós elaboramos juntos na oficina. Eu estimulo eles a pensar, peço para eles anotem no caderno o que têm de melhorar, as palavras foram extraídas de dentro deles, eles foram anotando e fomos colocando as palavras uma rimando com a outra e então a música nasceu em conjunto. Por ser a primeira música, teve muita opinião minha, mas hoje já temos meninos que criam sozinhos, mas eu sempre procuro caminhar com eles e dirigir todas as vozes é trabalhoso, mas graças a Deus, pelo talento dos meninos, fluiu bem, mas eu fui bem exigente com eles.
BW – Verdade que o clipe chegou a ter mais de 1 milhão de visualizações e, ainda, foi compartilhado pelo Edi Rock dos “Racionais MC’s”? Como você e as crianças se sentiram com tudo isso?
Robertinho – Sim, a música ultrapassou esse número! Mas no Facebook, várias páginas foram postando, aí o Edi Rock postou também e repercutiu bastante. A página “Raplandia” postou. Só nessa página, eu tenho os prints, nessa página foram 945 mil, depois do Edi Rock 195 mil, a página Rap Nacional, Realidade Cruel, tudo 200 mil, então, no Facebook repercutiu muito e quando o Edi Rock postou foi muito importante, todos sabem a importância dos “Racionais” na cena. Então, ter esse apoio e o olhar do Edi Rock voltado para a nossa música foi algo muito importante para nós! Isso nos incentiva e aumenta cada vez mais o nosso compromisso. Ficamos muito felizes.

BW – Ano passado vocês estiveram se apresentando na São Bento, que é o templo do Hip-Hop em São Paulo. Como foi essa experiência?
Robertinho – Foi um sonho realizado! Eu sempre falava para os meninos sobre a São Bento, falava da importância de conhecer a história do Hip-Hop, sabendo que o Rap é um elemento da Cultura Hip-Hop, então, temos que conhecer todos os elementos, passei documentários para eles falando da 24 de Maio e da São Bento, o marco zero do Hip-Hop, depois, eu passei vários vídeos, nós já sabíamos da importância e da responsabilidade de cantar naquele lugar e então tivemos o convite e a oportunidade. Alguns amigos viabilizaram as vans e fomos bem abraçados e pisar nesse território sagrado do Hip-Hop foi um sonho realizado. Lá foi onde tudo começou no Brasil.
BW – Em abril, vocês lançaram o vídeo clipe de seu primeiro single de 2020, “Foi Assim”, com produção do DJ e produtor musical paulistano Caíque, que já realizou trabalho com MV Bill, Rashid, Haikass e Projota. Como aconteceu esse encontro entre vocês? E como foi a gravação?
Robertinho – A primeira música de 2020 foi com o DJ Caíque, ele viu nosso vídeo clipe na internet e aí mandou mensagem parabenizando e pediu para saber mais do projeto e ele me explicou a forma que trabalhava, que ele só gravava o que gostava e onde via alguma coisa e aí ele decidiu gravar com os meninos, mandou os beats, eu escolhi, nós gravamos as vozes aqui e mandamos para ele. No estúdio, ele mixou e masterizou, finalizou a música em São Paulo. E aí ele decidiu gravar um clipe, porque a música era muito boa. Ele arcou com as despesas do clipe e nós fomos para São Paulo, eu corri para conseguir ajuda e consegui uma van para ir para São Paulo. Chegamos em São Paulo, gravamos o clipe e lançou no canal dele. E para mim o Caíque é dos maiores produtores de Rap do Brasil foi uma grande conquista para nós.

BW – Fale sobre o disco já lançado, que se chama “Periferia é Terra Fértil” e sobre a experiência com as plataformas de streaming de músicas?
Robertinho – Esse disco é um sonho! Era um sonho ter um CD gravado, original! Eu estendi esse sonho para os meninos, mesmo que as pessoas hoje em dia não use mais o CD físico, foi uma forma de presentear os amigos e os familiares. Tendo um CD em mãos também para vender e para divulgar mais o trabalho e a experiência foi sensacional, de poder lembrar de toda a caminhada, de todas as músicas construídas e concretizar tudo foi um sonho. E o nome “Periferia é Terra Fértil” foi porque as pessoas falam muito mal da periferia, mas tem muito mais coisas boas do que ruins. Coisas ruins tem em todos os lugares! E nós citamos na música que os maiores cantores, os maiores jogadores de futebol, nasceram na periferia. A periferia tem muitos nomes valiosos! Então, terra fértil, porque se saber semear vai dar muitos bons frutos, é necessário dar oportunidade para a periferia, existe todo um sistema que nos oprime, que nos joga só os restos, mas quando temos boas oportunidades a coisa vira e dá muitos frutos! Estou aprendendo a mexer nas plataformas, então, a experiência é muito nova ainda, mas a música tem que chegar nas pessoas, isso é que é importante.
BW – Parece que esse ano tem mais músicas para serem lançadas ainda, correto? Fale delas e também do novo single “Covid-19”?
Robertinho – Sim, tem algumas músicas prontas para serem lançadas, infelizmente, ainda não temos condições de pagar o estúdio, então, eu estou vendendo camisetas para levantar dinheiro. Temos umas 4 músicas para lançar. A situação complicou um pouco por causa da pandemia. Sobre a música “Covid-19” foi assim: uma ideia em cima da hora, cada um escreveu na sua casa e depois todos nos encontramos de máscaras e construímos juntos a música e foi importante lançar essa música da Covid, porque tem crianças e adolescentes falando sobre esse assunto e consequentemente nós fizemos a nossa parte, saiu pelo “Trilha Sonora do Gueto”, lá no canal e todos gostaram da música. Foi sensacional conseguir a tempo lançar uma música sobre esse assunto.

BW – Neste período de pandemia, como você tem trabalhado e orientado as crianças?
Robertinho – Neste momento de pandemia está bem complicado, estamos evitando reunir com os meninos, mas tem horas que não tem como. Nós temos um grupo de WhatsApp e eu sempre troco ideia por lá, sempre os estimulando a continuarem criando, estudando, pensando e quando nos encontramos trocamos ideia, mas temos evitado o contato. Tudo faço pelo WhatsApp. Nos encontramos uma vez a cada duas semanas presencialmente.
BW – O Rap salva? O que você diria para crianças que estão neste momento no mundo do crime?
Robertinho – O Rap salva, com certeza! Deus deu um dom para cada pessoa, um dom que pode ser desenvolvido, então, tem meninos que já estão mais desenvolvidos para fazer Rap, outros ainda não então trabalhando, se descobre, como é maravilhosa essa cultura e desta forma o Rap vai salvando. Deus usa esse instrumento, cada mensagem que construímos, ela faz sentido primeiro dentro de nós, depois cantamos, as pessoas se identificam, esse alguém manifesta que a música fez bem a vida dela, então, nos sentimos úteis. Ou seja, temos uma missão! E cada vez mais seguimos esse caminho, o que nos afasta do crime e para todos os meninos que se encontram no crime, nas drogas eu digo: Eu já passei por isso! Eu consegui acordar a tempo, é gostoso você se envolver no crime, nas drogas, mas chega uma hora que as consequências vão aparecer e tudo nessa vida tem consequências, boas ou ruins. Se você escolhe drogas, crime e as fitas loucas, as consequências ruins chegam, as tristezas na família, o caixão e a polícia. Então eu pergunto: Até quando vai valer a pena? O fruto vai ser de paz ou de medo e dor? Então, não compensa! A vida é valiosa demais para se perder dessa forma! Então eu falo o agora ou o eterno? Quer ficar sofrendo ou viver uma vida com paz interior? O crime não compensa!
BW – Quais são os planos da “Família UniVersos” para o futuro?
Robertinho – Os planos são concluir essas participações, eu quero conseguir estruturar o nosso projeto de uma forma que tenhamos patrocínio para conseguir praticar mais. O sonho é ter um “Instituto UniVersos” para conseguir realmente conviver com os meninos, formá-los e eles cuidarem de outras crianças que ainda vão surgir, ter vários outros cursos, atividades. Um lugar onde vamos poder todos os dias trabalhar e se reunir. Condições de gravar nossas músicas e fazer nossas apresentações e viver dos shows para impactar mais vidas.

Fotos: Arquivo Pessoal