Com a palavra a diva do “Bate Cabeça” no Brasil
Ela foi uma das primeiras vocais femininas no mundo do Hip-Hop Hardcore e se tornou uma das personalidades mais importantes da cena durante os anos 90.
Rubia Paula Fraga, sim, a letra “R” do inesquecível “Grupo RPW”.
Ela conversou com o Portal Breaking World e olha, o que não faltou foi assunto e muitas histórias para contar. Rubia em todo esse tempo sempre teve uma grande atuação dentro da Cultura Hip-Hop e também na luta do direito das mulheres e no combate ao machismo, sendo sem dúvida uma referência e inspiração para as gerações futuras.
Mulher, mãe, rapper, trancista, arte-educadora, cientista social e, acima de tudo, guerreira. Sim, a Rubia está na área! Vamos à entrevista:
BW: Gostaria que você falasse sobre a sua infância, onde nasceu e cresceu e quando teve o primeiro contato com a Cultura Hip-Hop? É verdade que o primeiro contato com a música negra você teve na vila em que morava e que na adolescência você frequentava os bailes da função? Fale sobre e nos conte como foi tudo isso.
Rubia: Nasci e vivi até a adolescência na Vila Gomes, Zona Oeste de São Paulo. Era “anos 70”, época dos bailes de quintal e eu pequena acompanhava minha mãe nessas festas ao som de Soul, Funk, Discoteque, Samba-Rock e Partido Alto. Ao fazer 14 anos, comecei a frequentar as domingueiras de Baile Black da época, como o Prata’s Club e o Asa Branca, ambos em Pinheiros. A energia do baile me contagiou, era a época que dançávamos todos juntos nos passinhos, as sessões de “balanço”. E, claro, o Samba-Rock e Melodia para aproximar os casais que se paqueravam…
BW: Quando você realmente decidiu começar a rimar? Você teve apoio da família?
Rubia: O que eu curtia como “balanço” descobri mais tarde que era Rap, como a Rappers Delight que eu amava na hora que tocava na matinê. Essa música, inclusive, era chamada de “melô do tagarela” por conta das rimas. E num desses bailes, vi pela primeira vez um show de Rap com MC Jack e Thaíde e DJ Hum. O tal “melô do tagarela” fez todo o sentido pra mim quando vi que nesse ritmo, havia a possibilidade de se fazer poesia! Não era fácil uma mulher nos anos 80 subir nos palcos, num espaço predominantemente masculino e tinha uma filha pequena, inclusive, se não fosse o apoio de minha avó Martina, talvez eu nem estivesse hoje aqui. Daí em diante, a história conta por si…
BW: Como você era vista pela sociedade, “uma mulher que rimava”? Foi uma das primeiras vocais femininas no mundo do Hip-Hop Hardcore, sofreu algum preconceito com isso? Inclusive, você tem uma música chamada “Discriminadas”, fale sobre ela…
Rubia: Como disse, eu estava entrando em um espaço onde os homens eram (e ainda são) a maioria. Nessa época, o Rap era estigmatizado como “coisa de bandido” e não foram poucas as vezes em que sofri, junto com outros Hip-Hoppers, abordagem policial violenta. A primeira música que gravei, eu já a cantava antes de estar no RPW, que é a “Discriminadas” e eu já externava em letra o que eu sentia em ser mulher na nossa sociedade, sem nem mesmo saber o que era o feminismo na época.
BW: Como você vê, atualmente, a atuação das mulheres dentro da Cultura Hip-Hop? Ainda existe muita discriminação?
Rubia: Sobre ser mulher, ter resiliência e vontade de ser MC, me deu força pra passar por cima desses obstáculos e eu vejo a nova geração bastante ativa e combativa na frente antimachista. O machismo nunca acabou e nem sei se um dia acabará, mas a nova geração de mulheres no Hip-Hop está cada vez mais chegando forte para estar no espaço público rimando, grafitando, tocando ou dançando.
BW: Como aconteceu a união de Rubia, DJ Paul e W-Yo e quando surgiu o grupo RPW?
Rubia: Conheci primeiro o DJ Paul, em uma das apresentações que eu fazia nos bailes sozinha. O W-Yo conheci quando fui jurada do Concurso de Rap da Kaskatas, para as coletâneas “Vozes de Rua I e II”, ele fazia parte de um dos grupos concorrentes, como dançarino. Ele veio primeiro como dançarino para Rubia e DJ Paul e, posteriormente, nasce o RPW, em 1991.
BW: É verdade que o grupo RPW criou o estilo “Bate Cabeça” no Brasil?
Rubia: Graças as influências musicais que o W-Yo trouxe para o grupo (Hardcore, Punk, Thrash Metal), nossa identidade visual e musical se molda de forma espontânea, a ponto de ser criado o estilo “Bate Cabeça”.
BW: Como foi viver a época do deck de rolo. Montar um loop cortando a fita e colando no som do pedal, com durex. Você pegou essa dureza dos grupos antigos?
Rubia: Nessa época, o Paul tinha um deck de rolo e era dali que saíam os loopings para nossas produções, inclusiva da “Pule ou Empurre” (todos os elementos da música foram sampleados). Como disse, equipamentos para produção era privilégio de quem tinha muita grana pra investir e não era o nosso caso.
BW: Quando e como foi a criação do primeiro Hit “Pule ou Empurre”? É verdade que cada um do grupo ia num orelhão diferente para pedir que a música tocasse na rádio?
Rubia: Quando a música começou a tocar no Projeto Rap Brasil, do Armando Martins, era prática comum todos irem para o orelhão, ligar pra rádio e pedir a música. Artistas, amigos, familiares, era uma prática que a grande maioria dos grupos da nossa geração tinha em mãos para poder promover as músicas, pois os programas de rádio, tanto oficiais como as comunitárias, eram nossos “streamings digitais” da época.
BW: Como era rimar nos anos 90? Era diferente do que vemos hoje? Na sua opinião, o que mudou para melhor e para pior nos Rappers e nas músicas de lá para cá?
Rubia: Não há muitas diferenças estruturais no processo de criação do ritmo e poesia. Vejo mudanças como momentos e gerações, influências de época, reflexos de sociedade, tudo isso influencia na escrita e sonoridade do Rap ao longo dos seus quase 50 anos. O que mudou pra melhor foi o acesso às tecnologias e o advento da internet, que facilitou demais a comunicação, trocas entre Hip-Hoppers do mundo todo e ampliou a possibilidade de se criar e produzir seu Rap em casa, com alguns equipamentos que antes eram muito caros e só acessíveis em estúdios de gravação. Não tenho visão de “pior”, apenas gerações com suas especificidades em momentos diferentes dentro contexto histórico do Rap.
BW: Rubia, fale sobre a discografia que existe do grupo. E sobre as músicas que fizeram mais sucesso.
Rúbia: Quanto aos discos: “RPW – 12” (1994); “RPW – Está na área” (1996); “RPW – Ao Vivo” (1997); “RPW – A Luta continua, o real Bate Cabeça” (2000); “RPW – Talento não morre, Recicla!” (2006); “RPW – 20 Anos DVD/CD” (2012). Algumas músicas mais conhecidas são: “Discriminadas”, “Pule ou Empurre”, “Peça Mais Som”, “Zé”, “Vergonha na Cara”, “Ser Honesto Pra Sofrer”, “BC/SP”, “Cada Um Com Seus Problemas”, “Sexo Cerveja Skate e Rap”, “Talento Não Morre, Recicla”.
BW: Vocês participaram de grandes eventos e receberam premiações nos conte sobre isso.
Rubia: Participamos de shows históricos, como com Planet Hemp na abertura do primeiro show do “Cypress Hill”, no Olympia, “Festival 300 Anos de Zumbi”, no Anhangabaú, recebemos prêmio da revista DJ Sound… foram muitos momentos, relembrar 25 anos de trajetória é um exercício gigante.
BW: Em 2017, depois de 25 anos o grupo anunciou o seu fim. O que os levou a tomar essa decisão? Como o público reagiu? Vocês se encontram ainda?
Rubia: A decisão de encerrarmos as atividades do RPW foi acordada entre os três. Sei que os fãs do grupo ficaram surpresos, mas é isso, tudo em nossas vida são ciclos e o do RPW chegou ao fim, de forma gloriosa e nos deixando com muito orgulho do que construímos. E sim, somos irmãos, amigos, trocamos ideias, brigamos, choramos, rimos, sempre em contato. Nossa amizade se estende para além do trabalho musical que tivemos juntos.
BW: Fale um pouco da vida da Rúbia no salão da galeria e como mãe e mantenedora de um lar. Quais foram os maiores desafios e dificuldades?
Rubia: Trabalhei na galeria do Rock por 30 anos, como trancista e só tenho a agradecer os conhecimentos e amizades adquiridos nesse período. E sobre ser mãe e mantenedora do lar, nada diferente da maioria das mulheres periféricas…
BW: Verdade que cursar um curso superior foi um sonho que você conquistou? Nos fale desse período.
Rubia: Por ter sido mãe na adolescência, as prioridades mudaram e o estudo ficou em último plano. Aos 42 anos, prestei ENEM para concluir o ensino médio e fui parar dentro da UNIFESP pela alta pontuação. Me formei em 2019, como Cientista Social e a partir dessa formação acadêmica, mais minha vivência no Hip-Hop, me tornei arte-educadora no projeto “Arte na Casa” da Ação Educativa.
BW: Você também trabalha como arte-educadora no Projeto “Arte na Casa” na Fundação Casa, fazendo oficinas de Rap. Como é trabalhar com adolescentes e jovens nessa situação?
Rubia: Está sendo mais um grande aprendizado, as trocas e vivências com adolescentes cumprindo medida socioeducativa. Ao final, acredito que eu aprendo muito mais com eles que o contrário!
BW: Verdade que você está preparando um trabalho solo em parceria com o Kamau? Pode nos adiantar algo de como será?
Rubia: Sobre projetos após a aposentadoria do RPW, tenho a parceria com o Kamau, meu amigo desde longo tempo e que infelizmente por conta de demandas minhas pessoais e profissionais estão adiando a realização. Mas talvez, após o período que vivemos de distanciamento social, voltemos a trabalhar e logo, venham novidades.
BW: Nos conte agora sobre “Clássicas Hip-Hop”, como surgiu a ideia de fazer algo assim? E como você, Rose MC e Sharylaine se organizaram para isso?
Rubia: No início desse ano eu, Sharylaine e Rose MC tivemos uma reunião e conversando sobre várias questões, enquanto mulheres MCs da primeira geração no Brasil, chegamos à conclusão que a história do Hip-Hop é quase sempre contada pela voz e olhar dos homens. Partindo desse pressuposto, resolvemos nos juntar no projeto chamado “Clássicas Hip-Hop” e desde então, estamos usando a página oficial “Clássicas Hip-Hop” todas as sextas, às 15h para, ao vivo, trazer a história contada por nós e sempre debatendo atualidades que envolvem o universo feminino.
BW: O que significa o Hip-Hop na sua vida?
Rubia: Sempre digo que se hoje sou a Rubia RPW é graças ao Hip-Hop. Ele é minha filosofia de vida, norteador de minha arte, cultura e política.
BW: Para finalizar, que mensagem você deixaria para as mulheres da nova geração que estão começando no Hip-Hop?
Rubia: Nossa sociedade é um terreno hostil para as mulheres e o Hip-Hop está inserido nela. Então, as dificuldades serão maiores que para os manos, mas se você realmente deseja estar nesse espaço, saiba que pode contar com uma rede gigante de mulheres que se fortalecem, se movem e se visibilizam, como nos coletivos femininos que estão ramificados em quase todos os estados do Brasil. Se cuidem, se fortaleçam entre as iguais e sejam referência para a próxima geração de mulheres do Hip-Hop!
Fotos: Arquivo Pessoal / De Arruda / Cristina Sininho Sá