Tem B-Boy na aldeia dos índios Tupi-Guarani
Ele nasceu no litoral de São Paulo, perdeu a mãe biológica quando tinha apenas 1 mês de vida e depois a mãe adotiva, quando tinha 5 anos, tendo apenas o pai e irmãos. Sua infância foi dentro da aldeia e na cidade. Vivenciou no ano 2000 a retomada das terras indígenas do Piaçaguera, que significa “o caminho ancestral”. Seu tio Awa Dju Pitotó e mais um grupo recuperou o Piaçaguera, pois ali era e sempre será o ponto de encontro e descanso dos Nhandewa Tupi-Guarani e, entre outros, nessa luta travaram brigas com duas grandes mineradoras pela terra.
Mas você deve estar pensando: o que essa história tem a ver com a Cultura Hip-Hop?
Bom, foi em 2003, por meio de um primo que Renato, também conhecido como Kuaray O’ea, que siginifica “amanhecer” teve contato com a Cultura. Desde então,vem praticando Breaking, não como algo para disputar, mas para se manter equilibrado. Ele fala: “Quem dança voa e quem voa precisa manter o equilíbrio, por isso danço Breaking”.
O Portal Breaking World conversou com o B-Boy Kuaray O’ea e vejam o resultado desse interessante bate-papo:
BW: Pode nos falar seu nome, sua idade e lembranças da sua infância?
Kuaray: Sou Kuaray O’ea, tenho 30 anos no caminho do aprendizado, sou gente boa! (risos). Ainda com uma semana de vida, assim me contaram, que partiu minha mãe para o outro mundo, outro plano. Pequeno, sendo mal cuidado pela família, uma linda moça e seu marido me pegou para cuidar. Dizem que a minha situação não era brincadeira, tinha feridas por toda parte do meu corpo, furúnculo por todo o corpo, falam que não conseguia nem chorar. A moça linda que mencionei é minha mãe de criação e Carlos é meu pai de criação. Eles me adotaram e cuidaram de mim, minha mãe adotiva também partiu nos meus cinco anos de idade… Meu pai aguentou a barra comigo e meu irmão mais velho, desde os doze anos já bebia muito, ainda tinha minha irmã mais velha e outro irmão, éramos em quatro, hoje em três e as lembranças… Todos eram músicos na época também, eu acompanhei boa parte disso na minha infância, pois, às vezes, eu tocava nos intervalos. Bateria, eu tocava desde os quatro anos de idade e até hoje um pouco (risos). Desde pequeno no meio de tanta gente que tocava pra caramba, não tinha como evitar, a música já fazia parte de mim. Aos doze anos eu, Kuaray, aprendi a tocar violão, só observando e ouvindo, também estava compondo alguma coisa já..Antes que eu me esqueça: nasci em Itanhaém, depois que meu pai ficou doente, fomos morar em Peruíbe, perto da minha irmã mais velha.
BW: Como era a vida na aldeia?
Kuaray: No ano 2000, aconteceu a retomada das terras indígenas do Piaçaguera, que significa “o caminho ancestral”.
Meu tuty (tio) Awa Dju Pitotó e mais um não tão pequeno grupo, recuperaram o Piaçaguera pois ali era e sempre será o ponto de encontro e descanso dos Nhandewa Tupi-Guarani e entre outros. Enfrentaram muita gente, pois ali habitavam duas mineradoras, Jazilda de Leão Novaes e o Popesco. Eles detonaram boa parte da terra, extraindo areia, cavando buracos para enterrar entulhos e fazer vidro. Têm muitos buracos naquelas terras e muitos destes são lagoas que, nem sabemos ao certo o que tem lá em baixo.
BW: Quando você teve o primeiro contato com a Cultura Hip-Hop?
Kuaray: Em 2003, tive o primeiro contato por meio de um primo que dançava Breaking, falávamos dançar Hip-Hop na época (risos). Comecei aprender os movimentos e não parei, desde então, venho praticando Breaking não como algo para disputar mas para me manter equilibrado, quem dança voa, quem voa precisa manter o equilíbrio e por isso, eu danço. Junto com tudo isso, também buscava falar minha própria língua, o tupi-guarani, conheci várias aldeias e dancei em muitas delas, ensinei e aprendi, na maioria mais aprendi.
BW: Fale um pouco do seu nome e como surgiu?
Kuaray: Quando completei dezoito anos, meu tio Awa Dju Pitotó sonhou com meu nome, Kuaray O’ea. Na minha cultura, os nomes são dados a nós, ainda recém-nascidos. Quando não temos o nome, não temos direção. Meu nome significa “primeira luz” ou “amanhecer”, meu tio diz que esse era meu nome, então, assim é.
BW: No seu aprendizado de Breaking tiveram movimentos que foram mais difíceis de aprender?
Kuaray: O Air Flare, tive muita dificuldade para executá-lo, mas persisti. Nesta mesma época, eu pensava que não daria certo juntar outras culturas ao Breaking. Então, imitava outros B-Boys, como Hong10 e Physicx, também tem o Lil G, Bart, Taisuke e Issei, que pra mim eram os melhores, depois comecei a criar os meus próprios movimentos. Por ter Power Moves semelhantes ao Hong 10, me chamavam no início de B-Boy Korea, não me sentia mal não, levava na boa. Neste tempo, treinávamos numa escola chamada Carmen Miranda aos finais de semana e durante a semana, treinava no Guaraú, em Peruíbe, com os B-Boys de lá. Muitas vezes, treinava com os B-Boys Grilo, Polegar e Leandro, na minha aldeia na grama ou areia. Era bom, mas nao desenvolvia os “Moves” por não deslizar. Depois que machuquei o ombro, fiquei um bom tempo sem dançar.
BW: Alguma vez sofreu discriminação por ser um índio no mundo dos B-Boys ou ser um B-Boy no mundo dos índios?
Kuaray: Na cidade de Peruibe treinava com alguns B-Boys que sempre me trataram muito bem e na aldeia outros índios até gostavam do que eu fazia.
BW: Verdade que depois que aprendeu começou a dar aula de Breaking na aldeia?
Kuaray: Sim, em 2018 continuei dançando, dessa vez era fora da aldeia, no estúdio de dança da bailarina Luciana Amancio e no estúdio de dança Cinthia Riggo, por lá fiquei alguns meses. Nessa época, ensinava Breaking na aldeia, nos meus alongamentos, com as crianças, usava o treinamento de Txondaro para fortalecer ossos, corpo e principalmente o espírito.
BW: O que era o treinamento Txondaro?
Kuaray: O Txondaro é uma dança praticada na minha cultura, é algo milenar. É um treinamento de guerreiros para enfrentar florestas, enfrentar inimigos, nessa dança aprendemos a nos desvencilhar dos perigos, aprendemos vários tipos de rolamentos. Aprendemos a ter habilidades nos movimentos e também uso essa dança no Breaking.
BW: Você também é Rapper e rima em tupi-guarani. Nos fale sobre isso?
Kuaray: Consegui fazer minha primeira rima em tupi-guarani em 2019, a música chama Txondaro. Comecei fazer essa música na aldeia e só consegui completá-la quando vim para a cidade novamente. Na cidade, me dediquei ao Breaking e também à vida de MC. Consegui juntar o Rap à cultura tupi-guarani, hoje treino também Power Moves usando o Txondaro como base da minha dança, é algo louco.
BW: como é ser indio e ser B-Boy?
Kuaray: Nós do Tupi-Guarani, tudo que vemos, aprendemos na hora e na dança não foi diferente, quando eu comecei a treinar, evoluí rápido. Mesmo sendo gordo, eu consegui fazer muitos movimentos que pessoas magras não conseguiam. Eu sempre peguei as coisas rápido e isso vem da minha familia, todos são assim. Alguns tocam instrumentos, outros dançam. Ser B-Boy não é só ser um dançarino que flutua e faz movimentos. O B-Boy procura a cura do corpo, da alma, da superação. Despertamos tudo.
BW: O que pensa sobre o Breaking virar uma modalidade olímpica?
Kuaray: Independente do Breaking virar esporte, para mim o Breaking sempre será meu equilíbrio, pois quem dança voa, quem voa precisa manter o equilíbrio e é por isso que eu danço.
BW: Que mensagem você deixaria para quem está lendo essa entrevista?
Kuaray: Independente de qualquer movimento, de qualquer dança, o importante é despertar tudo o que existe dentro da gente, o que realmente somos. Eu quando danço, eu penso em voar, precisamos do equilíbrio, as pessoas precisam de equilíbrio e o mundo precisa de equilíbrio. Por isso busque o melhor dentro de si, o melhor!
Fotos: Arquivo Pessoal