Tem B-Boy brasileiro na França
Ele é de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, já participou e ganhou diversos eventos nacionais de Breaking e também representou o Brasil em muitos campeonatos internacionais.
É B-Boy, produtor cultural, youtuber, professor e faz parte da “Natural Effects”, que é uma crew da Dinamarca. Estamos falando de Matheus Barbosa Lopes, na cena conhecido como B-Boy Kid Guma.
Estava com saudade dele? Nós também! Atualmente morando em Paris, na França, junto com a família, Kid conversou com o Portal Breaking World e contou um pouco da sua história, das suas ideias, experiências e o motivo que o levou a sair do país.
Veja a entrevista:
BW – Queria que você falasse um pouco da sua infância… Onde nasceu e quando teve o primeiro contato com a Cultura Hip-Hop?
Kid Guma – Nasci na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, cerca de cinco horas da capital. Meu primeiro contato com o Hip-Hop foi em 2003, com o B-Boy Ailton, legendário B-Boy da cidade. Ailton também era grafiteiro e por meio dele, da “Notoy Crew”, tive um contato real com a Cultura Hip-Hop.
BW – Com que idade começou a dançar e com quem aprendeu Breaking? E em que condições? Nessa época, você tinha algumas referências na dança?
Kid Guma – Ailton Silva era um dos B-Boys mais respeitados do interior paulista, além de ter uma alta qualidade de dança, ver ele dançando sempre me impressionava. Eu ia sempre no seu estúdio de tatuagem e ali aprendi os passos básicos da dança. Nesta época eu tinha 18 anos, minha referência era a turma de amigos.
BW – Dentro de casa você teve apoio da sua família?
Kid Guma – Não, nunca tive, a maioria das minhas escolhas não eram respeitadas.
BW – O que significa o Breaking na sua vida?
Kid Guma – Difícil dizer, são tantas coisas, o Breaking me tornou o que sou hoje, me deu condições de viver uma vida melhor, me deu liberdade e possibilidades, como temos um governo que não dá a mínima para pessoas de baixa renda, não investe no futuro das crianças, o Breaking me deu uma via alternativa a tudo isso.
BW – Em que ano começou a participar de Campeonatos de Breaking? Qual foi o primeiro que participou?
Kid Guma – Quando comecei em 2003/2004, tinham muitos B-Boys e B-Girls na minha cidade e eles sempre organizavam “cyphers” e campeonatos dentro das escolas, não era nada como nós vemos hoje em dia, era uma caixa de som, às vezes um microfone e pau na tábua e em um desses eu tive minha primeira experiência.
BW – Fale um pouco da sua caminhada como B-Boy aqui no Brasil e do trabalho que realizava aqui?
Kid Guma – Como B-Boy eu participei de centenas de campeonatos pelo Brasil, tornando uma referência profissional da dança (B-Boying). Fui convidado a ensinar Breaking e julgar competições em todo o Brasil, ajudei a desenvolver eventos de Breaking em festivais famosos no Brasil, como “João Rock 2019”, “Forró da Lua Cheia” e dou suporte para pessoas que necessitam de ajuda profissional relacionados a Cultura Hip-Hop, desenvolvo um trabalho de educação com a dança, no qual compartilho informações de forma gratuita por meio da rede. Desenvolvi uma pesquisa sobre as principais lesões dentro do Breaking, que fornece dados importantes na prevenção, cabe ressaltar que fui o primeiro a realizar uma pesquisa assim no Brasil.
BW – Quais foram os principais eventos que participou e ganhou no Brasil e fora? Na sua visão, quais são os maiores desafios dos B-Boys e das B-Girls brasileiras?
Kid Guma – Me destaquei entre dançarinos dentro e fora do Brasil, sendo o primeiro brasileiro a ganhar a “Batalha do Month”, tradicional evento de Breaking em Copenhage (Dinamarca) e tomar o segundo lugar no evento do mundial “Floor Wars”, no mesmo país. Outras aparências minhas foram notáveis fora do país, como: “Hustlen Freeze”, na cidade de Shenzhen (China), “Break The Floor”, em Cannes (França), “Hotmilk”, em Angers (França), “Groove Move”, em Genebra (Suíça). Já no Brasil, me destaquei na “Batalha Final 2009”, “Circle Prinz 2006”, “Urbanos Beat e Boty 2008”.
BW – Falando sobre o grande desafio dos B-Boys e B-Girls, o Brasil é um país que não dá suporte e acesso para nossos artistas, temos que entender isso.
Kid Guma – Você abre a porta da sua casa, tem traficantes, lixo, esgoto a céu aberto, ônibus lotado, talvez a pessoa que está lendo acha isso tudo normal, mas não se dá conta de como o meio influencia. Após entender isso, você tem que abordar toda essa questão de uma perspectiva positiva de melhora, ou melhor, de superação, como posso superar tudo isso e continuar dançando? Ou melhor, vivendo? Você terá que lidar com as dificuldades políticas e de acesso à cultura, superar toda a pressão que o país carrega e focar na sua carreira como dançarino. É possível? Se você acreditar, é possível. Tentar encontrar um meio de sair dessa negatividade e focar em fazer coisas positivas, pensar diferente das pessoas que só reclamam e não fazem nada para melhorar. Conhecimento é a chave para sair de tudo isso.
BW – É possível viver da dança aqui no Brasil?
Kid Guma – Sim, é possível, porém muito difícil, a pessoa que quer viver da dança tem que pensar diferente, ser profissional, entender a parte burocrática, projetos e linguagens que as instituições que trabalham com a cultura usam, não é só ser um bom Breaker, você deve entender isso, eu sei que tem muito B-Boy e B-Girl melhor do que eu, mas que não cresce na dança com eu cresci, porque não entendeu isso ainda.
BW – O que acha dos eventos brasileiros de Breaking e de seus organizadores? Já se sentiu injustiçado alguma vez? O que poderia melhorar?
Kid Guma – Eu gostava muito dos eventos brasileiros na época de 2006 até 2013, eles eram mais reais, o foco não era sempre ganhar um campeonato, mas sim uma batalha na “cypher” que, às vezes, durava o evento todo. Isso sim que eu gosto, talvez ficar em primeiro lugar te dá um orgulho sim, mas isso não é tudo, não pode ser tudo na vida do Breaking, você tem que saber o valor da dança fora da competição. Creio que um grande passo para melhorar os eventos de Breaking são os workshops, uma grande forma de você sair ganhando do campeonato sem competir com ninguém e podendo usar esse conhecimento ao longo da sua carreira. Outra coisa é pensar no público que assiste, incluir o público na vibe do evento, como que a pessoa vai apreciar a dança se ela não consegue ver? Precisamos pensar nisso também. Sobre ser injustiçado, já me senti sim, porque existem alguns pessoas que não sabem dividir as coisas e muitos jurados despreparados, que votam somente em seus amigos, isso causa um enorme problema dentro dos campeonatos, pois as pessoas perdem o gosto de ir em eventos, mas independente disso sei meu valor como dançarino.
BW – No “YouTube” você tem um canal, fale sobre ele e tudo que apresenta lá.
Kid Guma – Sim, eu uso meu canal no YouTube para compartilhar informações com a galera do Hip-Hop, foi a maneira que eu encontrei para ajudar as pessoas se profissionalizarem e evoluir na dança. Lá eu ensino sobre currículo artístico, sobre conceito na dança, como ganhar dinheiro para viajar, alimentação e recuperação, são pontos importantes para o crescimento de cada dançarino.
BW – O que o levou a sair do Brasil? E porque escolheu a França? O que é ser B-Boy na França? Pretende voltar algum dia?
Kid Guma – Eu gostaria de dar um futuro melhor para meu filho e minha esposa, não quero que ele passe por tudo que passei no Brasil. Eu até tinha uma vida estabilizada aí, com casa, amigos e trabalhos com a arte, mas eu percebi que por mais que me esforçava não era o suficiente, então, decidi mudar e ver como funcionava aqui. Escolhi a França porque tenho alguns amigos aqui que poderiam me ajudar, essa é minha terceira vez aqui e então pensei que seria um bom começo.
BW – A sua chegada na França foi meio tumultuada? Você chegou a postar uns vídeos falando de alguns problemas. O que aconteceu de fato?
Kid Guma – Na verdade, a França enfrenta vários problemas de racismo com imigrantes e pessoas de baixa renda, especialmente se você não fala francês e um casal conhecido meu veio para cá e tiveram sua bolsa com passaporte roubados, fomos a estação de polícia e a polícia foi extremamente racista, não deixaram a gente entrar e ainda pediram nossa identidade. Esse foi um caso. O problema também são pessoas oportunistas que se aproximam da gente com interesse, acham que vai chegar aqui a primeira vez e vão ficar ricos, famosos e conseguir tudo fácil. Acabam por voltar para o Brasil, frustrados.
BW – Como os brasileiros são vistos e tratados aí? Existem muitos B-Boys e B-Girls irregulares na França?
Kid Guma – De modo geral, todos gostam muito dos brasileiros, mas isso depende muito se você fala o idioma e se tem condições financeiras. A França é uma grande potência na cena Breaking, pois o governo investe pesado na cultura aqui, mas comparado a antes o número de dançarinos vem diminuindo, a cena é bem forte, mas reduziu um pouco.
BW – Como está a sua situação atualmente? No que está trabalhando e como está desenvolvendo a sua vida no Breaking?
Kid Guma – No momento, estou trabalhando com “freelancer” no Breaking, estou em um projeto com a “Associação VNR” onde ministro aulas, também realizo aulas particulares, participações em clipes de cantores famosos e street show.
BW – Como foi e está sendo esse momento de adaptação e pandemia na França para você e sua família? Nos conte os detalhes. Do que você sente falta do Brasil e do que você não sente falta?
Kid Guma – A França é um país muito lindo, muitos pontos históricos conhecidos por todo mundo, especialmente aqui aonde eu vivo, em Paris, porém, os franceses são muito frios, não sorriem, sempre estão muito ocupados, não conversam muito, não querem se envolver em nada, não recebem bem pessoas de fora. Isso que eu sinto falta do Brasil, não existe povo mais carismático que o brasileiro, feliz, alegre, com sorriso no rosto, não dá para entender porque os franceses são assim, o governo dá tudo que eles precisam e ainda sim são sempre mal humorados. Agora já me adaptei legal, conheço bem Paris, estou aprendendo um pouco do francês, as coisas estão caminhando. A questão da pandemia foi uma surpresa para todos, nunca vivemos um confinamento, quando o Presidente Macron decretou a quarentena, vimos que o negócio era sério. Eles foram bem adiantados comparado ao Brasil, ao ver que o número de infectados estava crescendo, pararam imediatamente o país, fechando escolas, universidades, reduziram o número de trem e metrôs, colocaram álcool em gel nas ruas, todos os lugares e lojas só era permitida a entrada com máscara, as únicas coisas que abriam eram os supermercados, eles também criaram um certificado, que você deveria preencher toda vez que fosse para a rua, sem ele você era multado em até 300 euros. Mas o meu confinamento, foi um dos melhores eu acho, pois uma associação me convidou a morar em sua sede bem no começo e a sede era bem na frente do Louvre, no centro de Paris, na janela do meu quarto eu via o museu mais famoso do mundo, para mim isso foi incrível, jamais pensei que moraria em um lugar assim. O que eu não sinto falta do Brasil são dos políticos e da política brasileira e da falta de incentivo e exploração do trabalhador, do preço da comida.
BW – Vi que você preparou alguns cursos on-line, nos conte um pouco sobre isso?
Kid Guma – Sim, aí no Brasil fui pioneiro em produzir cursos on-line de Breaking. São 3 cursos, o abordagem mental, power footwork e Breaking workshop, que são mais para iniciantes. São cursos fundamentais para a evolução mental e física dos dançarinos, ali compartilho vários conhecimentos que obtive em batalhas, viagem e vivência com diversos B-Boys e B-Girls de renome mundial e pelo preço que coloquei lá é um presente que as pessoas não deveriam deixar passar.
BW – Com a pandemia, entramos numa realidade de eventos on-line, battles on-line. O que você acha sobre isso? É uma tendência?
Kid Guma – Os eventos on-line já existiam antes da pandemia, por exemplo, eu estou em parceria com o pessoal da “Formelles”, que foram os primeiros a criar batalha on-line no Instagram, creio que foi a maneira de manter a cultura viva, produzindo essas batalhas on-line, mas se você leva isso para o contexto de inclusão, não são todas as pessoas que têm internet ou uma boa conexão e as pessoas que não têm não podem participar, mas de modo geral eu não curto muito, mas entendo que foi uma solução, espero que seja só nesse período, que os eventos reais voltem a acontecer.
BW – Na sua opinião, como será o futuro para o Breaking? Que novas realidades B-Boys e B-Girls terão que se adaptar?
Kid Guma – Eu vou te dizer uma coisa, apesar de estarmos no século XXI, com todas essas coisas, internet e eventos mega grandes, o Breaking está reduzindo, as pessoas estão parando de dançar, se você comparar com a época de 2006 a 2010, os eventos eram bem mais cheios, agora com essas coisas de “superstar” e todo essa porcaria, todo jovem que começa quer ser um “superstar do Breaking”, não conseguindo, se frustra e os responsáveis de tudo isso são os organizadores de eventos e os B-Boys e B-Girls que estão envolvidos somente pelo dinheiro, com essas instituições que estão matando o Breaking aos poucos, podemos viver um grande retrocesso na cultura.
BW – O Breaking foi indicado como mais uma modalidade Olímpica. O que acha sobre essa realidade tão polêmica e discutida? É algo positivo ou não?
Kid Guma – Sim, é positivo, mas depende de quem está lá e segundo denúncias da B-Girl Hurricane, que abandonou seu cargo na “Federação Francesa de Breaking”, já existem casos de corrupção, então, vamos manter o pé no chão e ver: para quem vai ser bom isso? Creio que em modo de visibilidade, reconhecimento, melhore um pouco, algumas empresas também vão querer investir, teremos mais professores, médicos, etc., isso pode levar o Breaking a outro nível.
BW – Como esse assunto é visto pelos B-Boys aí na França?
Kid Guma – As pessoas que conversei sobre isso têm uma visão positiva, veem uma possibilidade de crescimento, porém existem pessoas que não concordam com a ideia.
BW – Que diferenças você observa entre o Breaking que é feito aqui e o Breaking que é feito aí? Diferenças nos treinos, na disciplina, no foco? Fale sobre isso.
Kid Guma – Bom, nos treinos vejo que os breakers aqui levam mais a sério, eles estudam, fazem workshop, pagam professores particulares e treinam bastante, já no Brasil as pessoas não fazem questão de escutar uma opinião diferente, querem treinar do jeito deles para sempre e isso causa um certo bloqueio na evolução, claro que existem pessoas dedicadas e que têm compromisso, mas a grande maioria não leva muito a sério. Se queremos evoluir seriedade é a chave! Porém, os brasileiros têm mais o swing, o ritmo e a simpatia, os europeus são bastante técnicos, executam muito bem, mas para mim, às vezes, parecem robôs (risos).
BW – Que mensagem você gostaria de deixar para todos aqui do Brasil e para quem deseja uma carreira como B-Boy ou B-Girl no exterior?
Kid Guma – “Se tudo que você faz é visto com diferença, você não deve desanimar, pois o nascer do sol é um espetáculo tremendo e a maioria das pessoas estão apenas dormindo!”. Quero dizer que acreditem no que fazem, estudem, leiam livros, não percam seu tempo, busquem crescer, planejem suas carreiras e as coisas vão se sair bem. Eu tinha tudo para desistir, perdi meus pais cedo quando era adolescente, aos 15 anos fui morar com minha tia, me envolvi com o Hip-Hop com meus 18 anos e hoje estou morando na França. Eu sei que é difícil, especialmente com as condições políticas do Brasil, mas é preciso superar tudo isso para alcançar o sucesso. Somente quando os homens enfrentam o verdadeiro perigo, aprendem transformar vitória em derrota. A dança sempre será um diferencial na sua vida.